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GLÓRIA: O Agente Português

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GLÓRIA: O Agente Português

Chama-se Glória mas não é nome de mulher, é histórica mas apresenta-se como um verdadeiro thriller, tem qualidade internacional mas é 100% portuguesa. A primeira série nacional para a Netflix, filmada em completo secretismo, o Expresso é o primeiro meio de comunicação à escala global a revelar os bastidores da produção, está quase pronta e pode mudar a forma como o Mundo olha para a ficção nacional. Aposta forte do serviço de streaming norte-americano, é um projeto televisivo português como nunca se viu. Trata-se de uma série character-driven, centrada num engenheiro eletrotécnico nascido no seio de uma família burguesa, educação católica baseada nos valores do regime de Salazar, estudos concluídos, serviço militar cumprido em Angola, cuja vida muda na antiga colónia portuguesa.

É ainda em África que João Vidal (interpretado por Miguel Nunes) é recrutado pelo KGB e, no regresso à metrópole, acaba por fazer uso da influência política do pai para conseguir emprego na RARET, o centro transmissor da Rádio Europa Livre controlado pelos Estados Unidos que existiu na Glória do Ribatejo. Sabe que a sua missão final é destruir as antenas de rádio, impedindo que americanos façam propaganda para a Europa Oriental, mas terá de manter-se na sombra e agir de acordo com as normas para conseguir atingir os seus objetivos na Glória do Ribatejo. Será João Vidal um agente duplo, adicionando-se uma nova camada à personagem?

"A certa altura percebemos que ele também só reporta aos russos aquilo que lhe interessa", deixa escapar o realizador Tiago Guedes (cineasta também responsável por A Herdade) à conversa com o Expresso. É algo que vai acontecendo à medida que a personagem (re) constrói o seu posicionamento político. "Ele começa por estar do lado da URSS por crença absoluta, acha que o comunismo será a forma mais correta contra as injustiças do capitalismo, mas durante a sua jornada percebe que ambos são muito parecidos. Desilude-se com toda essa luta de poder."

A história de Glória é completamente ficcionada, João Vidal não existiu e Mia, a telegrafista russa e agente do KGB desaparecida das instalações da rádio, também é fruto da imaginação de Pedro Lopes, mas o enquadramento histórico é real e faz parte da memória de quem lidou de perto com uma realidade portuguesa da Guerra Fria, entretanto esquecida (ou nunca conhecida) por muitos. Não por Pedro Lopes, cujo avô fazia parte da Emissora Nacional. Contava-lhe muitas histórias sobre esse tempo e entre as memórias surgiam também as da RARET. Era a Rádio de Transmissão, "uma verdadeira cidade americana criada no Ribatejo, instalada numa herdade com 200 hectares", que entre as décadas de 50 e 90 desempenhou "uma função importante na Guerra Fria, inserida na estratégia americana." Era daquele espaço gigantesco, "comprado pelo engenheiro Bívar, com quem o meu avô trabalhava, para os americanos", que eram enviadas as mensagens ocidentais e pró-democracia para os países para lá da Cortina de Ferro, através de um posto retransmissor. Tudo enquanto Portugal se mantinha refém do Estado Novo. Os anos passaram sem que Pedro Lopes perdesse a curiosidade sobre o tema, sempre se interessou por História e acabou mesmo por licenciar-se, até que chegou a altura de voltar a recordá-lo e dar-lhe forma enquanto série, sem se centrar apenas na RARET.

Para o argumentista e produtor, era necessário mostrar "como Portugal geriu a política internacional com os Estados Unidos, com o resto da Europa e com o Bloco de Leste", sem esquecer a gestão da política interna, o papel da PIDE. "A história esteve tantos anos fechada no meu caderno que só fazia sentido pegar nela quando houvesse condições de poder fazê-la bem. Este interesse da Netflix, conjugado com os restantes parceiros, permitiu ter aqui um projeto com uma dimensão que não é normal na indústria", frisa Pedro Lopes. "Houve possibilidade de se fazer algo com orçamento diferente", expressa ainda, sem referir valores. O Expresso tentou saber o investimento envolvido na operação, mas este mantém-se em segredo. Será altos, tendo em conta os números oficiais da produção.

Com mais de 150 atores envolvidos (60 são figurantes) a Miguel Nunes juntam-se Carolina Amaral, Victoria Guerra, Afonso Pimentel, Adriano Luz, Joana Ribeiro, Marcelo Urgeghe, Sandra Faleiro, Carloto Cotta, Maria João Pinho, Inês Castel-Branco, Rafael Morais e Leonor Silveira nos principais papéis, Glória teve mais de 130 pessoas da equipa no set, contou com filmagens em vários pontos do País e teve cerca de 20 empresas envolvidas no projeto.

Desde duplos a um professor de piano, passando por um coach de russo, foram vários os especialistas contratados para ajudar a dar corpo à série. Também não seria possível construir uma série desta envergadura sem contar com consultores históricos a trabalhar com as equipas criativas, as personagens são ficcionais, mas os episódios desenrolam-se numa espécie de timeline, com acontecimentos reais, para garantir a minúcia necessária para um produto de qualidade superior, ao nível das séries de época inglesas tomadas como exemplo. Embora não haja muita bibliografia sobre o tema, ainda foi possível fazer uma recolha oral junto das pessoas que trabalharam na RARET.

Falar com quem conheceu aquela verdadeira cidade nos seus tempos áureos, que tinha estúdios e antenas, zonas de habitação, de lazer (com ténis e piscina) e mesmo instalações escolares, revelou-se um trunfo maior, numa altura em que começam a escassear os testemunhos de quem já lá trabalhava nos anos 50. É uma história desconhecida da maior parte e foi também com surpresa que Tiago Guedes se apercebeu que havia "uma parte tão significativa de um período da nossa história recente que nos escapava completamente."

"É muito interessante saber que tivemos ali a CIA a emitir para a União Soviética, a partir da Glória do Ribatejo; descobrir que tudo aquilo existiu como o maior secretismo; que quem lá andava não tinha noção real do que estava a fazer", considera o agora realizador de Glória.

FILMAR ONDE TUDO ACONTECEU

Tiago Guedes conseguiu contar com locais de filmagens reais para filmar uma série histórica: as casas da RARET são as originais, foram recuperadas de propósito para Glória "uma grande sorte e uma grande luta" , e não houve quaisquer gravações em estúdio para a série. Encontrar os sítios ideais para filmar é um dos maiores desafios dos location managers internacionais quando preparam uma nova produção, razão pela qual também esta série contou com filmagens em lugares tão distintos. "Estamos a falar de uma série que tem imensos decors, em diversos locais. São entre 80 e 90, sem contar com subdecors como quartos e salas", adianta Tiago Guedes.

A povoação alentejana de Cabrela, em Montemor-o-Novo, foi a escolhida para cenário da vila da Glória, ao passo que o Campo Militar de Santa Margarida recebeu a equipa quando foi necessário simular Angola e o Centro Emissor de Onda Curta, propriedade da RTP e situado em Pegões, no Montijo, foi o local escolhido para a RARET ficcional. Já na capital houve filmagens em espaços como o Cinema São Jorge, o aeroporto, o Palácio da Junqueira, o Cemitério dos Prazeres ou a pastelaria Versailles. Tudo pensado ao pormenor para mostrar três realidades muito diferentes no Portugal nos anos 60: da Lisboa das elites à vida no campo, sem esquecer esquecer aquela "cidade americana fora do espaço."

No início Tiago Guedes queria filmar tudo dentro da propriedade original, até porque "o edifício original era lindo por dentro" mas as suas proporções e o avançado estado de degradação em que se encontrava tornaram impraticável a obra, quer do ponto de vista orçamental, quer de tempo e foi aí que se identificou a necessidade de encontrar uma solução. "Achei que o mais difícil seria encontrar um local para a própria da RARET, mas nisso tivemos sorte e aquele espaço [em Pegões] acabou por ser um dos décors centrais. Mais difícil foi a própria Glória do Ribatejo, que achava que seria o mais simples. As aldeias mudaram muito e encontrar um local que não estivesse descaracterizado revelou- se impossível." Cabrela acabou por ser o local escolhido, mas há elementos modernos que vão ter de ser limpos pelos especialistas em efeitos especiais. É algo que já estava previsto. "A maior intervenção será em pós-produção", garantiu Tiago Guedes ao Expresso.

UMA HISTÓRIA PORTUGUESA COM CERTEZA

A primeira reunião entre a SP Televisão e a Netflix aconteceu em 2018, e a ordem de trabalhos incluía dar a conhecer a produtora portuguesa, mas o produtor cinematográfico Juan Mayne (responsável pela série espanhola Ministério do Tempo e por filmes como 7 Anos ou Fe de Etarras tinha uma questão mais direta para fazer. "Qual é o projeto em que mais acredita e que gostaria de escrever?", perguntou a Pedro Lopes. E se o que estava em causa era a primeira série portuguesa para a Netflix, este não hesitou. "É o Glória!", e foi exatamente esse que avançou. "Já tinha a pesquisa muito avançada, tínhamos ido ao apoio do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), tínhamos ganhado e estava tudo em andamento, mas a partir daí completamente redesenhado", conta ao Expresso. Em janeiro de 2019, e já com avanços significativos no projeto, foram a uma reunião com a Netflix em Miami, nos Estados Unidos, e tiveram "luz verde para avançar". A liberdade criativa vinha com um aviso, que a Netflix deixou claro desde o início: não é para ser parecido com nada. A diferenciação é cada vez mais importante e "ninguém quer ver uma série espanhola que seja igual a uma americana ou a uma nórdica", exemplifica o argumentista e produtor.

Está em linha com o que defende o gigante norte-americano da distribuição de conteúdos em streaming, presente em todo o Mundo, que tem sido umas das principais forças na sentido de dar palco a formas diferentes de contar histórias. Queriam mesmo "uma série portuguesa, uma história que fosse verdadeiramente nacional, que mostrasse o país e que interessasse ao público nacional", conta Pedro Lopes, que não esconde o apelo internacional da narrativa de Glória, que cruza a história portuguesa com uma dimensão internacional. Do colonialismo português (com as suas semelhanças e diferenças face ao inglês ou ao francês, por exemplo) "sentimos a guerra lá no fundo", expressa também Tiago Guedes à influência da Guerra Fria, uma guerra de informação com o objetivo da dissidência e resistência dos dois lados, não faltam temas para reflexão. "Houve um trabalho de escrita de 12 meses para 10 episódios, mais seis meses num processo de reescrita. Depois tivemos quatro meses de filmagens. O tempo que há para o desenvolvimento de um projeto destes é incomparável", expressa Pedro Lopes, que contou com um acompanhamento próximo de Juan Mayne e Alice Molinari, da Netflix que nunca tentaram transformar Glória em algo diferente do que o seu criador tinha pensado.

"Faziam as perguntas certas durante o desenvolvimento da série. É importante ter feedback no processo, ajuda-nos a chegar ao sítio certo", afiança o argumentista, que contou com Tiago Guedes na altura de fechar melhor os episódios. O primeiro capítulo já foi entregue à Netflix, e o realizador está agora a montar o terceiro, fechando um conjunto definidor para o sucesso de uma produção junto dos telespectadores. "Os primeiros três episódios são determinantes para agarrar, são episódios importantes, e eu estou contente com eles. Sinto que estão redondos, começam e acabam bem, têm aqueles ganchos que tanto se prezam."

microcliffhangers, ficamos com uma pergunta (conta o realizador, desafiado a desvendar os segredos do sucesso) "Eu estou demasiado por dentro para avaliar, mas as perguntas e os finais estão lá." À medida que Glória avança, o cerco vai-se apertando, tanto do lado do KGB como da CIA, e o disfarce de João Vidal corre o risco de cair. E se é cedo para spoilers, pode já deixar-se a certeza de que esta é uma série cujo final é, em certa medida, aberto.

"O João é alguém que pode ser interpretado como demasiado do bem, sem ser moralista, mas ao longo da série também vamos conseguir sujá-lo. No final podemos chegar mesmo à conclusão de que ainda não o conhecemos", diz Tiago Guedes sem falar na possibilidade de uma segunda temporada. Nada está fechado, mas parece haver vontade de fazer de Glória um grande título à escala internacional. É algo que se percebe não só pela escolha do elenco, que também conta com atores norte-americanos, como também na forma como alguns eventos serão explorados atente-se também em alguns flashbacks e sonhos da personagem principal.

É que se o ponto de partida para Glória é um capítulo português na história do último século, a série está a ser encarada como uma nova página na produção nacional. A jornada pessoal de João Vidal chega este ano a todo o Mundo.

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